A paz da cidade 01 JUL 2022 Michael Lima 334 Escrever sobre política, sempre será um caminho perigoso. Ainda mais quando o texto trata da relação daqueles que vivem em Cristo com a política. Ela costuma ser um campo epidérmico, geralmente inflado por bandeiras e esperanças — quando não por ideologias, utopias e más intenções. A política é a morada mais antiga do poder. E, quando se trata de poder, a casa onde ele estará sempre será afetada. Ele costuma ser o domesticador das virtudes, o desvirtuador dos discursos mais sinceros. Por isso, digo de início, quero que você saiba que quem escreve o texto, não é alguém que tem paixões pelo campo político, mas que o observa como um fenômeno que precisa ser analisado racionalmente. Por ser acadêmico na área, descobri que as pulsões políticas são inimigas das boas análises, por isso lido com a temática dessa maneira. Em outras palavras, o texto não falará de política partidária, muito menos será movido por alguma delas. Nele, quero falar do sentido mais originário e desafiador da atitude política, a convivência. Conviver é o mais político dos atos. Na verdade, a etimologia e o histórico da palavra, apontam para este como o seu sentido primeiro. Aristóteles, o proeminente aluno de Platão, nos ajuda na compreensão do termo. Se imagine morando em Atenas na época do filósofo grego. O local onde você mora, é extremamente voltado para a cidade, polis, de várias formas. O sentido de coletividade é fortemente vivido. Sua vida, habilidades e ofício são vistos como uma parte orgânica da cidade. Os cidadãos, aqueles que sabem que a convivência não é somente estar ao lado circunstancialmente, mas possuir uma vida comum, são chamados de politikos. Os politikos são aqueles que vivem a realidade em confraternização com os que estão na cidade, sabendo que partilham das mesmas venturas e infortúnios. O politikos vivem em koinonia com os que vivem na cidade, em uma espécie de comunhão pública. Como nem tudo são flores, também existem os idiótes. Eles desprezam a koinonia da cidade, preocupados somente com as questões da sua própria casa, com o seu próprio destino. Entenda casa em um sentindo mais amplo. Sabendo que convivência envolve decisão, desafios e esforços, o idiótes prefere conviver somente com quem lhe é familiar, quem facilmente se encaixa em sua visão de mundo e forma de vida. Por escolha, o idiótes vive à margem, distante dos esforços pela paz da cidade, ignorando suas problemáticas. Ele simplesmente busca o que irá trazer benefício somente para si. Suas habilidades não são utilizadas para o bem da cidade, ele não possui uma vida comum com ela. Curiosamente, há uma situação com uma proximidade interessante no livro de Jeremias. O capítulo 29 fala de um contexto interessante, e com um aprendizado para a nossa comunidade. Roland Kenneth Harrison, Ph.D. britânico que foi conhecido por seus estudos em Antigo Testamento, aponta que Jeremias teve notícia em Jerusalém de que alguns dos profetas falsos exilados estavam predizendo que o poderio de Babilônia em breve sofreria um colapso, e que em consequência os exilados não tardariam a retornar à sua pátria. Por essa esperança de um rápido retorno ao lar, os exilados decidiram viver à margem. O que é de se compreender em primeiro momento, afinal, estamos falando da Babilônia. O império não era somente temido por seu poder militar, mas conhecido por suas técnicas de aculturação dos povos conquistados. Basta lembrar do nome de Daniel e dos seus amigos, sendo desvirtuados para nomes de louvor às divindades babilônicas. O próprio Senhor responde à forma de vida escolhida pelos exilados. Nos versos 5 e 6, a instrução é a de que eles continuem a viver. Construam, plantem, comam, casem, tenham filhos, são instruções dadas pelo Eterno ao seu povo. Aí na Babilônia, a vida de vocês continua. A Babilônia não é exceção à ordem de “cultivar” dada em Gênesis 1.15. Contudo, havia algo mais que o Senhor precisava lembrar o seu povo, de que eles não poderiam deixar de “ser uma benção” (Gênesis 12.2), eles não deveriam deixar de “guardar” (Gênesis 1.15) o lugar para onde o Senhor os mandou. 'Procurem a paz da cidade para onde eu os deportei e orem por ela ao Senhor; porque na sua paz vocês terão paz.' Jeremias 29.7 NAA Você consegue juntar os pontos? Mesmo que os nossos corações dancem em exultação com a esperança do dia que veremos o rosto do nosso Redentor, nosso lugar não é o de estar à margem da cidade onde ele nos colocou — preocupados somente com as nossas casas e os nossos “próximos”. Somos chamados para “procurar” (!דר) a paz da cidade, não somente orar por ela. Essa “busca” (!דר), envolve estudo dedicado, para prática e aplicação. Ela está ligada à realidade de que temos uma vida em comum com a cidade onde estamos, que a nossa paz está ligada à paz dela. Ela deixa claro que as nossas intenções cotidianas podem ser dominadas por mesquinhez e egoísmo, que não são somente antipolíticas (no sentindo que aqui traçamos), mas antibíblicas. Ao final, minha intenção não é a de ignorar que o texto lida com dois campos que podem ser — não somente — distantes, mas conflitantes. Contudo, especificamente sobre a questão levantada, traz felicidade ver que há uma certa aproximação. Só somos cidadãos, politikos, se estamos em “comunhão” com a cidade, tentando lidar com suas problemáticas e utilizando as nossas habilidades para o bem dela — não há atitude política maior que esta. Por outro lado, o livro de Jeremias nos lembra que, mesmo cristãos exilados à espera por uma nova terra, ainda são pessoas chamadas para cultivar e guarda o local onde foram colocados. Ser uma bênção lá, buscar a paz da cidade, como se fosse a sua própria. Ser um cidadão do Reino, em muitos sentidos, é também um chamado para que você seja um melhor cidadão da sua cidade.