Eleições e realismo político 20 OUT 2022 Michael Lima 220 A experiência me ensinou que o cotidiano é o grande devorador das idealizações. No campo político, não poderia ser diferente. Sei que o texto que agora inicio, até pode parecer uma voz dissonante quando comparado ao primeiro que foi escrito sobre a temática — “a paz da cidade”. Mas, por incrível que possa parecer, eles falam de “políticas” diferentes. Infelizmente, falar da essência de algo, raramente é o mesmo que observar a sua realidade. Não poderia ser diferente com a política. Poucos conseguem compreender essa questão, e, sob o ombro daqueles que conseguem entender a realidade política, pesa o fardo de vê-la de forma solitária — além de serem muitas vezes incompreendidos. É o que ocorre com um filósofo italiano do século XVI, Nicolau Maquiavel. Ele era filho de uma família de pequena nobreza, que forneceu à República muitas gerações de funcionários públicos. Maquiavel não era alguém que via o campo político de forma apaixonada, mas o compreendia de maneira interna e realística. Não é por menos que a sua conhecida obra, “O Príncipe” (1532), divide sentimentos e opiniões. O príncipe é um tratado sobre o poder político, ou, como preferi descrever no texto, sobre realismo político. O governante, aqui chamado de príncipe, precisa se manter no poder. Sua postura, seus acordos, seus discursos, e a própria construção da sua personalidade política, serão baseadas nessa premissa. A atividade política do príncipe não é exercida no vácuo, mas considerando a sua necessidade de sobrevivência. Para Maquiavel, assim como para o jogo político da sua época, era mais interessante que esse príncipe fosse temido, ao invés de ser amado. Era esperado dele a postura de quem tem controle das coisas, principalmente para uma época na qual guerra era praticamente uma realidade social. Diferente da época do filósofo florentino, e distante de sua análise racional, estamos diante de uma eleição, com eleitores que parecem andar alienados de um olhar racional do campo político, e candidatos que sabem muito bem tirar proveito da situação. Vivemos uma época de paixões políticas, que necessariamente leva o debate político para um nível acalorado e pouco conciliatório. Por esse motivo, é comum que, principalmente na época das campanhas eleitorais, as conversas sejam inflamadas. Melhor seria não falar sobre política, diriam alguns. Outros, se convertem em “pregadores” dos seus candidatos, como se vissem neles a oportunidade última de uma mudança social. Em resumo, boa parte do povo brasileiro parece não compreender a gritante diferença entre discutir política e discutir sobre a pessoa dos candidatos. Esquecem que a política é — talvez — a morada mais despudorada do poder. E que o poder é uma força bruta, mesmo que seja sedutor através de discursos cativantes e idealizadores. Não diferente da época de Maquiavel, é desse poder político que os candidatos vivem. Dele depende a sua sobrevivência nesse campo. Por esse motivo, é desastroso quando alguém adentra o campo político cheio de pulsões e paixões — por um partido ou candidato. A paixão certamente afetará a percepção daquilo que é a própria política. Ela é o espaço da disputa institucionalizada e do poder. A modernidade a estruturou para que fosse o campo de acirrados embates ideológicos. Para que a rivalidade existisse somente no momento dos discursos, das deliberações. Ao final delas, somos todos indivíduos que possuem aspirações e necessidades reais. A política é o espaço que gera a percepção da dignidade do outro. Um outro que tem uma visão de mundo e modo de vida diferentes dos meus, mas que concorre igualmente para que a sua dignidade seja reconhecida. É a morada das divergências de discursos e ideologias, exatamente por compreender que é uma arte imperfeita, como imperfeitos são os seus atores — os homens. Na política não deve residir a fé, mas o ceticismo. Para um estudioso da área, a afirmativa se sustenta pela nítida certeza da imperfeição da arte política. Ela pode nos conduzir por caminhos melhores, de maior dignidade e equidade para aqueles de quem ela é serva. Mas, ao mesmo tempo, basta olhar para trás e ver todos os momentos nos quais ela conduziu a humanidade para uma barbárie que desconhecíamos até então. Acreditar que a política deve ser vista através de um olhar cético, ou prudente, tem mais lógica ainda no campo teológico. É ele quem fala da necessidade de “orar e buscar a paz da cidade” (Jeremias 29.7). Contudo, também é nele que é explicitado que a sequência de governos humanos, com as suas características previsíveis e cíclicas, somente conhecerá uma “remissão” através da “pedra que é cortada sem o auxílio de mãos humanas” (Daniel 2.45). O curioso é que Platão, em sua obra “A República” (385 - 370 a.C.), já conseguiu identificar que a democracia é presa fácil dos discursos messiânicos. Por compreender a natureza da política, ele chama de tirano o indivíduo que afirma que será ele quem irá resgatar valores perdidos, ou estabelecer uma espécie de Canaã terrena. Então, como devemos encarar as eleições que se aproximam? Melhor, como devemos encarar a política? Entendendo o que ela realmente é, um campo de disputas de poder e imperfeições. Um campo de tentativas e erros. Lembrando que a melhor maneira para observar e influenciar o cenário político com o seu voto, parece ser racionalmente. Até mesmo tendo uma postura cética, fugindo dos olhares apaixonados e das posturas fideístas. O texto não tem intenção alguma de conduzir você para uma determinada bandeira política ou candidato. Prezo demais por minha integridade intelectual para fazer algo assim. Ao contrário, ele foi escrito com o propósito de rememorar a realidade da política. Deixar claro que ela pode ser a morada de bons atores, que construirão através dela cenários que serão possivelmente melhores — ou piores — do que os que hoje conhecemos, mas que eles, assim como a própria política, são imperfeitos como nós somos. Precisamos orar e buscar a paz da cidade (Jeremias 29.7), ser sal e luz (Mateus 5.13-16) onde estivermos, mas nunca ter fé na possibilidade de que nós mesmos, ou qualquer um outro, poderá construir o Reino que “existirá para sempre” (Daniel 2.44) e certamente será construído “sem a intervenção de mãos humanas” (Daniel 2.45).